Fabulinha

........................................................para Darshany.



......José Carpo Ribatejo nadava em um poço azul embaixo ao sol de meio dia e o calor desconcertante que lhe esquentava o couro cabeludo e lhe dava a vontade de arrancar com força os tufos ruivos, e enquanto regalava-se com o gelo azul da água, viu brilhando lá no fundo, pouco embaixo de uma rocha, sob a fina luz coada pelo céu e pela água, um rebrilho de estrela. José Carpo Ribatejo pestanejou dois segundos, enfiou-se água abaixo, sem piscar nenhuma vez enquanto olhava concentrado o que quer que fosse aquilo. E é de tanta esquivadura o chão arenoso dos lagos, que o brilho estava era longe, bem mais longe que o previsto, e enquanto vencia algas, não pôde o português ver as três índias que passavam mais ao largo na floresta, e uma índia que pisava, assustada, em suas roupas, e a segunda que tocava, temerosa, suas botas, e a terceira que erguia, encantada, seu casaco. As três índias muito riam, e pegaram toda a veste, sem nem ver, que não podiam, o nadador concentrado em chegar à sua estrela.
......Abybyra pôs as botas, mas pôs uma em cada mão, Abyara pôs a blusa, mas pôs amarrada à coxa, e Aguãia pôs o robe, mas o pôs sobre a cabeça. Riram muito, todas três. Mas a bota, essa fedia, e Abybyra as jogou longe; quanto à blusa, tinha inhaca, e Abyara a deu ao chão. Só o casaco, sempre usado sobre a blusa, e muitas vezes nem isso, pois passara muito tempo relegado a uma cadeira, não cheirava a ranço azedo. Era, de fato, cheiroso, pois José do Ribatejo, em seus tempos de além-mar, prezava por um perfume, e às vezes passava fome pra cheirar pouco melhor, e o casaco, companheiro, ainda guardava nas tramas um rescender de lavanda, fraco, porém distinguível, e que Aguãia não notou.
......Viram que cabiam braços pelas mangas da indumenta, e a dona por direito, que o pegou primeiro ao mato, deu-se a experimentar. Ficou séria três segundos, as outras já bem sem fôlego, e então disse que pinica, diacho de coisa quente, que come a carne da gente, parece urtiga da braba, coisa horrível, sás irmãs! E era pena, porque o pano era liso como seda e de um tom azul celeste que imitava o espelho de ar. Abybyra, vendo aquilo, os olhos brilhando o pano, correu três metros e meio e voltou com duas botas, já falando, enquanto vinha, ói irmã, como é bonito, vê só como é resistente, se pendura isso num cinto não vai ter homi que aguente, ói irmã, troca co'a gente! Mas por que que jogou fora? perguntou desconfiada, Joguei fora coisa nada, tava só guardando ali! E Aguãia, que era anósmica, esqueceu-se da suspeita pra pensar em Agulá quando visse o cinto novo, e trocou com a irmã.
......Abybyra com sorriso pôs um braço, pôs o outro, esperou cinco segundos, até desistir chorando, ai pinica! Ai, pinica! Mas tem chêro tão gostoso! Ai pru que que morde tanto um bichinho tão fromoso! E então, fula de ódio do casaco e da má sorte, perguntou, bem sibilina, para a irmã: quer trocar não? Abyara ergueu os olhos, que eram par dos muito belos, e falou, com inocência, que disso ela tinha muita, mais irmã, que eu num mereço! Num posso te dar o coisa que eu peguei no mei do mato... tem inhaca e tem piolho, depois vai te fazer mal... A num tem problema não, irmãzinha coisa minha, fica co bichinho azul, que você muito merece, e muito coisica minha, fica, fica, vai, ô vai. O que Abybyra queria, e que Aguãia desejava, era ver, era isso sim, a irmã se pinicando, igual às duas vaidosas. Mas Abyara era boa, e aceitou feliz a troca, ainda muito agradecida pela bondade da irmã, que lhe dava o presente mais bonito dentre os três. Colocou a mão por dentro do casaco disputado, e viu que era muito áspero, de fios duros e usados, e ainda tinha, lá dentro, umas bolas de uma coisa que brilhavam sob o sol. Então sorriu, bem contente e falou para as irmãs, ôi! Já sei, como quem inventava um brinquedo. Puxou as mangas pra fora pelo lado de dentro, e assim virou o casaco, do outro lado, pelo avesso. Era muito mais surrado que o lado antes pra fora, e não era azul, mas verde, embora muito apagado, de tecido bem barato. Com seis botões de latão. Vestiu então as duas mangas, e o forro, agora certo, lhe beijou os braços nus, e as costas destampadas. Até que quente, ele é mesmo, mas não morde mais agora, ele beija-beija, irmãs!
......Ah, que raiva, ai que desgosto, Aguãia de boca aberta e de olhos apertados, Abybyra até que rindo, mas cum canto só da boca, e arrancando vagarosa um pedacinho da blusa. Aguãia falou, surdina, ficou bom, ficou irmã? E Abyara: ficou sim, que coisa boa! E Abybyra: só qui agora tá é feio. E Abyara: Ligo nada, vai ser bom contra os mosquitos! E sorriu bem francamente.
......E é verdade que os mosquitos, e as vespinhas, e as moscas, e as formigas, e as lacraias, e tudo que pinicava, nunca mais chegaram perto da pele dessa Abyara, mesmo quando, e muitas vezes, ela ia sem casaco, que o calor daquelas terras muito é, e queima o pé. José Carpo Ribatejo ficou foi é convencido de que a culpa da estrela que encontrara sob as águas era do casaco velho, que tinha desde miúdo, e que sempre anunciara como sendo um amuleto, que o verde era de esperança, porque tinha encontrado um boizinho de madeira no dia que lhe ganhara, e a avó lhe dava cascudos, dizendo que era heresia dizer coisas tão pagãs. Mas José agora cria, e o jurava pelo dia, que a pedra que conseguira não era pedra nem nada, era o casaco da sorte que se transformara em ouro. Mal sabia o português que a esperança não se vende, não interessa a pepita, e quem troca uma esperança por um pedaço de ouro não passa de um grande tolo, e que a sua pedra era pirita.