Derrocada (ou Fogo Branco)


Aquele velho não via
desde o tempo em que a terra
sujara-lhe as vistas.
E, cego, dormia,
sobre a cama de terra
colado à parede
de palha

O velho acordava
sem a luz do sol.
O que o acordava
era, de manhã,
o sol na parede
de palha

Às cinco da madrugada,
sentiu-se acordada
a pele do velho
que abriu bem os olhos
mais brancos que o inferno
que não viram, cegos,
a fúria possessa
da viga inflamada
de cento e dez quilos
na sua cabeça



Dançavam, dançavam, cantavam as flamas
no meio, e em volta, e no alto do chão
A água trazida tornava-se em lama
que o fogo lambia e gritava que não!
E o olho do povo alagava o terreiro
E o Pai Feiticeiro se paralisou
Gritaram ajuda, pedindo por chuva
de areia ou de água ou de gelo, que for,
e o Xamã com sede de fúria nos lábios
já tão enrugados, já tão sem clamor,
ergueu um chamado gelado de sangue
por todos os mortos de agora e depois.
E pôs-se a girar no terreiro ensopado
no molho alagado de horror pelo chão
girava, e, girando, seu corpo se pôs.
Era o sol da véspera, era Anunciação.

Ebo Lubango surgiu na fogueira
que agora arrastava seu reino até o céu
a noite o atacava, serpente faceira,
com gritos, com cinzas, com almas dos seus.
Mas Ebo Lubango era a estrela primeira
que guiava o povo por tempo e areia.
Sozinho ganhava do Fogo-Leão.
Os olhos brilhavam duas luas cheias,
quando dentre as matas ouviu-se um trovão.
E um riso estridente do fundo do escuro.
Vieram
os tiros
e as redes
e o ódio
mais puro
que aquela gente
nunca conheceu.

E encurralados, e já semi-mortos
e tão assustados dos outros já mortos
o sangue gelado por riso demente
e coagulado nos joelhos tortos,
caíram, prostados,
toda aquela gente.

Mas quando jogaram as redes,
e quando os cativos foram perceber,
foi Ebo Lubango a gritar Liberdade
foi Ebo Lubango o primeiro a morrer

Um tiro no olho lhe fez fez a coragem
ser petrificada logo a florescer
e os outros cansados caíram na lama
e se ajoelharam, sem nem mais morrer



Chorava no meio dos cacos de palha
uma moça negra na luz da manhã
Diria que a ira dos deuses não falha,
mas não vira o fogo poupar o xamã.



Na ondas serenas na beira da praia
lá ia um navio sereno a boiar
e dentro do bojo sombrio levava
a coisa mais triste que a água banhava
em todos os cantos ocultos do mar.