Soneto



A casa inteira branca está vazia
e o vento lá fora, Mais Bonita,
não se move. E, branca, me fita
Vênus tão longe. Vênus tão fria.

O vento sentou no chão da varanda,
parou o ar e calou a cidade
inteira. A aquosa claridade
do dia parece ter forma, e abranda

as formas das coisas. Abrir-se-ia
a amplidão claríssima de espaços
frente os meus olhos - Nítida e pura.

Mas eu, porém, que descortino o dia
parado à beira-luz, estou a um passo
de anoitecer dentro da noite escura.


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História de Maria na Palhoça

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Quando via as vagas claras a espalhar espumas brancas
Sempre olhando da janela, murmurava o mesmo canto
De que bela que seria se ela fosse feita em brumas
E deitasse sobre as ondas, e se as ondas lhe fizessem descansar

E sentia sempre ânsias quando a lua se levanta
De soltar os pés descalços, e como se fossem campos
De orvalhos e neblinas e de verdes e lazúlis
Atravessar oceanos caminhando etéreamente sobre o mar

E um dia convenceu-se, ao ouvir gaivotas mansas
Que falavam com voz rápida de incontáveis encantos
Das pacíficas planícies de geladas águas claras
De que a luta era vazia e que a paz era tão bela de se olhar

E andou a passos lentos, e sorria qual criança
Que não vê nenhum perigo onde a vida enxerga tantos
E com algas e com peixes a beijar seus pés descalços
Pôde então dormir serena sob o som do oceano a lhe embalar.


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Frederico

É tudo tão tremendo descontrole,
companheiro
Esse fogo nos pneus
Esse fogo nos colchões
Esses pelo amor de deus
Essas férreas erupções
Esses corpos, companheiro
Esses vôos pelo céu
antes de morrer no chão
Esses gritos de calibre
Esses fogos de enxofre
Esses corpos, companheiro
essa vida nos porões

É tudo tanto, tanto triste e irremediável
Tanto fogo nos pneus
Tantas foices pelas mãos
Esse foi-se, o volta, o deus
As vazias plantações
Essas lonas, companheiro
essas hélices no céu
Os tratores pelo chão
Essa seca e dura fibra
Essa força que não quebra
Essas palmas, companheiros
esses sulcos dos sertões

Irremediável descontrole, meu amigo
Como haver revolução?
Como se apertando a água
Dentro de trêmulas mãos?
Aonde vamos, nós, senão
para a beira de um abismo?

Pois levanta os olhos lúcidos, comparsa
Pois se mesmo em céu nublado o sol incendeia a manhã!
Caso nos reste apenas esperança,
Façamos dela o fio, a corda, a trança
A segurar as irremediáveis mãos
- Mesmo que sobre a nós somente isso.
Não baixa os olhos lúcidos, Graniço
que a lucidez é o jeito de ficarmos sãos.


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Seis Canções



I

Quando essa Lua toda for-se embora
Deixando apenas as estrelas mansas
Irei pousar os pés nesse remanso
E me largar a respirar sem ver a hora

E lembrarei daqueles tempos já passados
Sob os teus olhos que brilhavam luzes
Quando meu peito carregava cruzes
Mas suspirava ao te saber ao lado

Quando teus olhos se cerravam risos
Em que meu peito o palpitar perdia
Descompassado, a me pulsar os dias
Pra ouvir os anjos a tocar seus guizos

Quando eu pudesse ouvir enfim tua voz.
E os dias doces do meu chão perdido
Vão se perder em meus surdos ouvidos
Vão se esvair no vento tão veloz


Então à Lua, que no céu se some
Hei de soprar a mais frágil tristeza
Da minha alma, e ante tal beleza
A Lua há de voltar,
Só para ouvir teu nome



II
Estou sentado na varanda
Com meus dois pés a balançar
E passo os dias a contar, amor,
Em estupor de te esperar

As montarias se amontoam
Sob os meus pés chutando o ar
E voláteis amantes voam, sós
Lençóis de capa a flapejar

Mas há relâmpagos nos montes
E, meu futuro, aonde estás
Se o tempo lépido do ontem
Teus cabelos esconderam em jamais

Com a certeza de quem anda
Com corações a balançar
Passam por mim sereias com clangor
Passa o amor a se afogar

E os nossos dias a se desfazer
Em sonhos turvos de tenaz sabor
Amargo era o seu vulto a me dizer
Que só chorava de pavor

Mas há relâmpagos nos montes
E, minha bela, aonde vais
Sempre te espero e desde antes
De surgires e me deixares pra trás




III
Cinco mil fotos
nas minhas mãos.
Tantos sorrisos,
e olhos em vão.
De onde escuto
teu riso, hein?
Quisera eu te ver sorrindo aqui,
meu bem.

Tenho ouvido
'ma nota só.
Tenho ouvidos
sempre tão sós.
Porém duvido
de mim também.
Pode bem ser que tuas notas sejam mais
de cem.

Minha esperança
já foi falida.
Minha fiança
desprometida.
O tempo avança
num alazão.
Cinco mil fotos de sorrisos teus
nas minhas mãos.

Tempo de aço,
tempo inclemente,
forço meu passo,
passas à frente.
Como que eu posso
deixar-te ir?
Leva-me embora. Pois, querida, o tempo vive
em ti.


IV
Você me viu sem me esconder
Meu coração
Perdeu um passo a vacilar

Eu tropecei sem perceber
Nas minhas mãos
E tinha a boca a gaguejar

Vi minha mão se contorcer
E se encrespar
E vi você e olhei o chão

Mandei minha boca não roer
As minhas mãos
Mandei meu rosto levantar

Pra ver você a me encarar
Como se não
Tivesse os dedos a roer
Meu coração


V
Veio a Lua, Riegel, Marte,
e as estrelas vespertinas,
e Arcturus a iluminar-te
num clarão de creolina.

E vieram como pombos
a pousar suavemente,
e ao chegar, levavam tombos
e caiam à tua frente.

E perderam-se as estrelas
nos teus olhos de alabastro.
Que teimavam em prendê-las
sem deixar mais do que um rastro.

Assim, manchas espalhadas
em mar que ninguém navega,
lá perdidas, todas cegas,
pararam, petrificadas,

as ausências das estrelas.
E estão, desde então, paradas:
São somente luz de velas
do que foram. Quase nada.

- As suas luzes verdadeiras,
só se pode hoje senti-las
em risada que, ligeira,
atravesse as tuas pupilas.
-


VI

Quantas estrelas no céu!

Quantas que eu não conhecia!


Quando eu usava chapéu,

a noite: suave dossel.
E eu, cego, nem percebia.


Tantas estrelas no céu
Em volta da noite vazia.


Minha cabeça doeu

tentando lembrar por que eu

achava que te conhecia.


Quantas estrelas no breu.
Que música sua eu ouvia?


Sentia que o brilho era seu.

O escuro, veloz, se escondeu:

E era você que sorria.


Conto de Natal


Ai Jesus. Vazou o grito seco, sem eco, naquele vazio imenso de noite sem nuvem. Nada que se movesse mais do que um tremer de cabeças e virar rápido de pescoços adejando línguas finas, nada ali nem fez sinal de que soubesse qual milagre se passava naquele oco de pedra onde outra voz, outra vez, gritava. Ai Jesus.
Arfaram pulmões, dois de um homem, outros de mulher, e abriu-se um terceiro par, de par em par, engolindo o ar gelado em golfadas de quem nunca bebeu água e viu um copo. E então estremeceu todo o vazio, imenso na noite sem nuvem, um grito vivo. E dessa vez fugiram todas as línguas sibilinas que adejavam pelas pedras, e adejaram asas de gangarros que cantaram todos juntos saídos não se sabe de que galho em direção ao firmamento.
Depois disso foi silêncio. Até que passos hesitantes de alpercatas no chão duro foram vindo lá de longe, e três figuras surgiram gingando sob o céu iluminado. Traziam chapéus de couro espremidos entre as mãos, e pararam à porta da casa de terra e olharam com olhos mansos o casal e a criança. Nasceu, um murmurou, e era retinto como a noite. Tem saúde, disse o outro, e sorriu com os dentes que não tinha. Sorriram todos com os dentes que não tinham. E então o primeiro ofereceu o seu presente, eu trouxe água pra lavar essas gargantas. É salobra, mas se bebe, e o pai recebeu a moringa. Eu trouxe um queijo pra dar leite prà comadre, declamou o segundo. É pouco, mas é meu último, de cabra que já morreu. E o pai recebeu o queijo em gratidão silenciosa. O terceiro não trouxera nada e desculpou-se. E o pai o abraçou como a um irmão. E então disse o visitante, olhando os olhos de um e depois os olhos da outra: mas uma coisa eu digo e dou pra esse menino. Coragem. Abraçaram-se outra vez.
O homem ergueu o menino devagar. A mulher chorava rindo. O menino ria fundo, ou seria isso um esgar de quem tem frio na noite sem fogo, mas que queima, a noite queima, olha o céu, Maria como queima de estrelas. E era verdade. Havia mais estrelas sob o chão naquela noite do que era de costume. Eram tantas que os seis, à sombra do abrigo improvisado, brilhavam de azul como se anjos. Ói, uma caiu, disse o homem. Faça um pedido, disse a mulher, que agora apertava entre os braços que tremiam o menino. Ou seria o menino que tremia. Ou seria a mãe que era o menino e não importa quem tremesse, porque tudo estremecera sob o grito da criança, e nem as pernas do seu pai, esse josé entre josés, tinham firmado ainda o passo apesar do seu esforço para parecer tranqüilo e muito firme. Pediu então que o filho se salvasse das garras da morte, e que a vinda do menino salvasse a ele, José, que esculpia cactos em busca d’água, e à sua esposa, Maria, que escavava a água em busca de leite, e à vaca morta, deitada à porta da caverna, e ao burro seco, que ruminava a própria língua havia meses, e às galinhas, todas mortas e enterradas sobre o chão, e ao próprio chão, que se abria como placas tectônicas de um planeta que crescesse, só crescesse, de maneira que nenhuma terra se encontrasse com outra, todas fossem se afastando, inexoravelmente.
E falou então Maria, a geradora da bênção, com sua voz seca de caatinga que soava entre os presentes como música de santos: Isso há de ser, meu Pai. Teu filho vai salvar a nossa vida, sim. Já salvou. São mais dois braços, duas pernas. A gente fica velho, a gente morre. Mas teu filho nasceu hoje. Nasceu um filho nessa terra onde não nascem nem as ervas mais daninhas. Esse é o único caminho nesses cacos de barro, e hoje é essa a única verdade. Essa vida. O teu filho, que vai aliviar o peso dessa cruz dos nossos ombros.
E sorriram entre si. E nu, descalço, aberta a boca e já vazia, o menino já dormira.