Ligação de Tempo




Esse menino é um fresco, resmungou o avô. O menino não ouviu. Tinha começado um discurso.
- O escravo, durante seu dia fatigante de trabalho, era obrigado a comer os restos da comida do senhor de engenho, que lhe dava as partes mais nojentas e escabrosas do porco para a alimentação. E assim, forçados como eram a comer... orelhas! e... rabos! e... tripas! eles acabaram por inventar, em sua penúria, um prato que parecia uma verdadeira carnificina macabra, misturada com feijão, alimento barato na época, e água com sal. Este prato de horrores ficou conhecido como... Feijoada!
Agora, vocês, pessoas de boa situação aquisitiva, em pleno século XXI, comerem isso com tamanha satisfação... isso é perversão, pai! Tira isso daqui, Catarina. Tira! Você, mãe... uma professora...
- É como professora que eu vou te dizer que esse mito da - Parou para chupar um osso. - feijoada ser comida de escravo não se sustenta, Henrique. Isso aqui - Levantou uma orelha do prato com o garfo. - era coisa fina. Escravo comia era angu.
- E não me venha falar em comer rabo aqui, na minha mesa, que isso é coisa de fresco.
- Heitor! - disse a avó.
- Papai! - disse a mãe.
- Helena, controla o seu pai? - murmurou o pai.
- Tira isso daqui, Catarina!
- Catarina, deixa o seu irmão em paz. Dá cá essa travessa. Agora toma - e o pai derramou duas conchas de feijoada no prato do menino. - Come, e de boca fechada.
- Como eu posso comer de boca fechada...
- E olha o respeito, Henrique!
- O que esse menino tá resmungando contra os pais na minha mesa!
- Heitor, calma!
- Esse menino é um fresco. E ainda por cima um fresco arrogan...
- Heitor! vem me ajudar a trazer o sorvete.
- Pára de rir, Catarina! Mãe, eu não quero! Mãe!
- Catarina, se você já acabou de comer, vai brincar! Só o caldinho, Henrique!
Só o caldinho... é um fresco, disse o avô, indo para a cozinha.