Luz das íris



O céu estava tão azul. Não se pode haver um céu assim azul sem que haja queda, minha alma. E daquela vez o que caiu foram os sinos: Caíram do céu desbadalando. Mas não vieram como trovões ou como anúncios catatônicos do final dos indivíduos. Vieram como borboletas amarelas, das mais comuns e mais singelas, que passam pelas carroças nas estradas outra e vez sem nem serem percebidas a não ser que se observe contra o verde. Ou contra o azul do alto. As badaladas eram borboletas contra o céu e se choviam. E do morro aqui do lado se enroscava em fila longa toda aquela gente devotada, todos aqueles milagres resguardados em muletas e viseiras, e o morro tão formoso era enfeitado pela fila serpentina. E vieste voejando-me, alma minha, mas eu não podia fixar-te porque eras fugidia como aquele bem-te-vi que me chamava pela estrada, ora à esquerda, ora à esquerda, ora à direita, ora ao céu. Até que ele chamou meu nome perto, muito perto que estiquei a mão, vai pousar aqui, é bem certeza. Mas foste tu que me tomaste pelos dedos, ai minha estrada, tu sentada do meu lado na boléia que balança. Tua mão na minha mão.
Que são as mãos, ó meus tremores? Pois que as minhas que não passam de pedaços de madeira de tão ásperas, eu que sempre repassei dias a claro a esculpir tantas santinhas em cotocos de pau seco, e que delas garanti que as minhas mãos pudessem ver alguma água, outra comida, vez em quando um parco queijo. Minhas mãos, minhas soleiras do meu tato pressentiram tuas mãos tão delicadas, tão macias nos teus calos, tão mais belas do que todas essas santas, essas cruzes, os altares que eu passei a vida inteira a modular. E me olhaste como quem me visse ali somente agora.
Quem és tu, eu perguntei, e respondeste-me, minhalma, e sorrimos um pro outro, si pra si. Eram tantas borboletas amarelas a passar pelas carroças. Me descreve como enxergas essa toda natureza, e dizias o que achava do azul tão infinito do céu amplo dessa terra que não finda, e dos verdes que ressaltam das planícies nas montanhas e descambam pelas matas coloridas que aparecem cá ou lá. E eu te escutava imerso numa coisa tão diversa, vendo tudo novo e vivo nos detalhes que você, somente tu tinha notado. As ladainhas subiam pelo ar e espiralavam, fumaça de sacrifício, infinita procissão, das mulheres e dos homens, das crianças e dos velhos, desses desesperançados, desses secos sertanejos, gente, alma, minha, terra. E paramos no sopé daquele morro - a igrejinha que ficava vigiando lá do topo - e subiram os andores com os santos, que fui eu que tinha feito, com essas mãos agora tuas, eu falei, e te ouvi rindo. E depois te ouvi silêncio. E disseste, contrabaixo, que não desse as minhas mãos assim a esmo, minha mãos que eram de artista, que eram feitas pra a beleza e para as formas mais sagradas. E eu toquei então teu rosto, mar aberto. Há mais coisa tão sagrada? disse eu. É você a coisa mais bonita que pisou nessas paragens, toda a vida. E você sorriu suas lágrimas. Não, não sou. Veja só, mas que desgraça. Eu não tenho nem as pernas. Me calei. Pois que não. Não, não vejo. Pois não vejo que desgraça. Bem notaste: eu não tenho nem os olhos, respondi.
Esses sinos que choviam sobre as nossas sãs misérias. Como aquelas borboletas amarelas que corriam pelos matos, apostando quem chegava. Que milagre anunciavam, quais os surdos que ouviriam, quais leprosos sentiriam suas peles sob os sóis? Milagre. Que é milagre, ai redenção de minha vida? São as almas que se ascendem quando mortas? Milagre. Mil lágrimas.
Seguramos nossas palmas devagar. Guiaste minha mão até um aro, depois outro. Minhas pernas, murmuraste. Tu flutuas. Diz aonde? respondi. Sê meus pés? disseste tu. Nos viramos a deixar a fila ali, com seus tantos miseráveis a pedir pelas tristezas. Fomos indo devagar. Os meus olhos, meus tremores, alma minha. Eram como dois saveiros. Que singravam para casa, para o novo, pelo mar.