Fábula n°2



Boa noite, disse o sonho. Boa noite, respondeu. E, já deitada, fechou os olhos para a luz verde-sombra, difusa sob a copa imensa das incontáveis árvores.

Era criança, e ganhava uma flor de aniversário. Uma tia de quem muito ela gostava. Era uma flor laranja, das pétalas delicadas, que tocava e lhe faziam carinho nos dedos. Andava com o pequeno vaso onde a flor morava para todos os lados, mas a flor, que acontece, pai? que acontece, mãe? começou a olhar cada vez mais indisfarçadamente para a terra. Ela estava uma semana só mais velha, e a flor encolhida, já velha muitos anos, no solo do vasinho. Pai, porque minha flor olha pra baixo? E dizia o pai que as flores são muito belas e são como que os pingentes dos colares da natureza, mas que colares nunca servem para sempre, e as flores voltavam à terra de onde tinham nascido. Ela vai morrer? Só o caule, a pétala e as raízes. O que não vai morrer, então, pai? Bem, você gostava muito dela, não gostava? E ela balançava a cabeça, acedendo.
Deciciu que as flores eram belas, mas que eram muito breves, e no aniversário seguinte foi eu quero de presente uma árvore. Uma árvore, sorria o pai. Sorriso, respondia, e o pai plantou-lhe uma árvore que era apenas um montinho de terra mexida. Não pôde ter ficado mais feliz com nada. E, daí em diante, a todos os presentes que lhe perguntavam que seriam, respondia que seriam árvores.
E foi acumulando árvores, e não só em aniversários, e foram tantas, e de tantos jardineiros de minuto, e eram árvores que eram agradecimentos, e eram árvores que eram cumplicidades, e eram outras que eram ternuras, e eram tantas que com os anos mais de dois terços de toda a vila onde vivia já lhe tinha dedicado ao menos uma, e voltava a plantar outra ao menos a cada novo aniversário. E as ruas foram ficando frescas, e as casas tinham frutos, e espontâneamente instituiu-se um bosque à borda das casas mais distantes, que crescia e que abrigava sons, e que abrigava cheiros, e que vivia bichos.
Era anciã, e seu marido perguntava que idéia a boa a tua, começar a plantar árvores; geralmente as pereferidas das donzelas são as flores. As flores, respondia com a voz trêmula da idade, as flores são pingentes, e olham sempre muito cedo para baixo. Até que são belas; mas com o tempo voltam sempre a se esconder sob lençóis, em tegumentos. E fazia-se silêncio, e as mãos com palmas finas dos dois noivos se apertavam sobre o colo.
Estava deitada sobre uma cama, e uma moça nova de cabelos dourados cochilava na cadeira à janela. Abria os olhos negros, e a moça ressonava leve. Dizia um deus te abençoe que quem sabe se chegou mesmo a dizer, e olhava para a gente tão bonita em pé a lhe guardar. Levantou então bem lépida da cama e foi andando com o povo que cantava, e ouvia músicas das terras de além-mar numa voz que era de anjos, só mais velhos. Caminhou por muitas ruas, cumprimentando seus filhos, e passou por tantos cedros, por pinheiros, por ingás, por tapetes cor de rosa sob os pés de pés de jambo, por damas da noite esguias acenando com perfumes, por jequitibás gigantes, e por mognos reais, e jenipapeiros, mallornes e jaqueiras, e chegou então ao bosque no final das casas todas, e o bosque estava imenso. Era uma catedral de teto verde, enfeitada com pingentes que sorriam, e a seu lado estava um que era laranja, e tinha as pétalas tão leves que faziam carinho nos seus dedos. E segurou na mão forte de seu marido, que sorria um sorriso de saudade, e deitaram sob a luz difusa e verde sobre o chão acolchoado de folhinhas amarelas. Disse, então que estou cansada, e o marido lhe falou pra que dormisse por um pouco. Balançou a cabeça, acedendo. Boa noite, disse o sonho. Boa noite, respondeu. E no jardim de sua casa, sobre um montinho de terra mexida, uma brisa apressou-se e mil flores amarelas choveram como que ouro sobre todo o céu da vila, todas vindas de um ipê amarelo imenso, com as cascas enrrugadas, as folhas ausentes todas e as flores agora ausentes, que fincou mais os pés no chão, continuou a olhar o sol, e explodiu uma folhinha, muito verde, na ponta do seu galho mais alto.
E a folhinha beijou, então, o azul.