Mar Brasileiro (ou: Finale)



As caravelas indo embora todas juntas, e os dois índios sentados na copa do cajueiro, olhando olhando. Um vestia um gorro de lã vermelha, marrom, e que dava uma coceira ingraçada na cabeça da gente, cum umas pulguinhas comprida pulando no cabelo. O outro tinha o pé esquerdo calçando uma bota direita, e o pé direito calçando uma meia.
Sentiam-se os caciques de todas as aldeias, capazes de matar inimigo só cum grito.
O das botas falou: ólha, que isqueceram os lá pra trás. O do gorro respondeu: Isquecero nada, que os de lá vão nadando atráis pra pegá peixe. O das botas compreendeu: uhum sim.


As caravelas indo embora todas juntas, uma com o porão cheio de cajus, araçás, bananas, cocos, papagaios e tatus. Todas cheias de molambos, muito embora aliviados e surpresos e felizes com a vista daquele éden improvável.
E sobre o convés, onde dormia a resignação da rotina de bordo, depois do mar de água fresca e o descanso das bolachas, ia cantando um marinheiro magro, descambado, doentio, mas com olhos de falcão e voz de trinca-ferro:

Vaaai, Capitânia,
vamos nós atrás!
Terra e montanha
nos cansam demais!

e encarrapitado no topo de outro mastro, da caravela adjacente, outra voz, rouquíssima, respondia no mesmo ritmo:

Vaaai, Capitânia,
nos leve em rasteira!
Águas Demonhas,
missão derradeira!

Um terceiro continuava, mais adiante:

Vaaai, Comandante,
Deus dê-nos saúde!
E ajude adiante,
e até Calicute!

e mais outro:

Vaaai, caravela,
e evita o mar bruto!
Que a nós, de mazela,
já basta o escorbuto!

até que, sobre a cabeça do próprio Pedro Álvares, ouviu-se a voz sempre bem-vinda que anunciava a terra-à-vista a cantar:

Vaai, barco escuro,
sobre o mar de sal!
Longe o futuro
dirá de Cabral!

e estava certo o coitado, cujo nome nunca ouvi, mas cuja vidência é impressionante, se bem que justificada; não estaria ele ali a anunciar os horizontes da nau capitânia se não visse muito à frente. De qualquer maneira, suas duas últimas frases, justamente as visionárias, não foram compreendidas nem pelos marujos, nem pelo Capitão, que bem na hora repetiu-se, desesperado, o choro já longínquo dos dois desterrados, que a esta altura teriam dificuldades em voltar à praia, e de cujas sentenças só se distinguia agora as palavras as mais desvairadas: "comem gente".



E houvesse pessoa na praia, entre os dois índios e o mar onde se debatiam os abandonados, tenho pra mim que diria em brados o seguinte, em resposta ao canto do vidente de Cabral, e estas, sim, o futuro há de repetir:

Ó mar safira, ah quanto de tua luz
são risos desta Vera Cruz?
Por te cruzarem, quantas mães choraram,
quantos filhos cor do cobre se pasmaram
quantas seivas findaram por tombar
para que fosses posse, ó mar?

Valeu a pena? Luto vale a pena
se a alma não é pequena?
Quem quiser passar além do chão em flor
terá de passar também na dor?
Deus ao Mar o sal e as águas deu
e foi nele que espelhou os seus.


*


- ói que eles os dois vão voltando!
- ói...
- será que vão umbora não?
- hum... uhum não...





Poema Desencarnado Para Teresa Inês Pedra



O que foi feito, maria,
da minha alma antes viva,
dessa minh'alma ora fria?
Que fado foi esse, maria?

Que fato foi esse, instantâneo?
que me fez em vento assim, rápido?
Me vejo, maria, tão pálido,
efêmero e tão momentâneo

que me vem à boca a pergunta
(terei ora eu boca, maria,
eu, que não vejo meus pés?)
ou, mais que pergunta, um soluço

minh'alma, apagada, não vale
meu prórpio suspiro, maria,
e entanto eu não posso deixar
de lamentar essa morte

não minha, eu de mim
já não tenho esperança,
mas da possibilidade remota
de ti, maria, de sermos contíguos
de ser eu contigo

Imagina, maria, um momento,
que tu me amavas
e que este Tejo barrento
onde te banhastes

não era mais água tão turva,
mas as águas claras de areias
tão brancas das praias recurvas
onde meu corpo tombara

E quando me visses caído
e cinza, por certo que irias
cair sobre mim, soluçando
o mesmo soluço contido

de tão grande e tão doloroso
das mães que perderam maridos
e não há soluço mais débil
E repara, agora, um momento

como eu não mais movo mi'a mão
para lhe afagar os ouvidos
e como meus olhos não dizem
o tanto de dor que me morde

por eu não poder lhe dizer
o tanto de dor que me morde
o tanto de dor que me morde
e eu quieto

Aqui deste limbo tão cinza
onde ora me encontro
Será que eu sentia, maria,
teus lábios tremendo
por sobre meus lábios de concha?

Ou será que eu, morto, iria
sentir por teu pranto
não mais que quieta indiferença
esta indiferença tão cinza
onde ora me encontro?

Que se eu não sentisse este beijo, maria
se eu não sentisse a tua mão,
quisera eu morresse de novo, queria
perder-me no meio das matas

Mais triste que, em morte, tua falta,
é ter, sob os olhos, presença,
e ver-me despido, em descrença,
de toda a saudade, e de toda a dor

A coisa mais triste da morte
é o assassinato, maria,
o assassinato inclemente,
sem que tu nem saibas,
do nosso amor inexistente
(quem dirá te importes)