Conto de Natal


Ai Jesus. Vazou o grito seco, sem eco, naquele vazio imenso de noite sem nuvem. Nada que se movesse mais do que um tremer de cabeças e virar rápido de pescoços adejando línguas finas, nada ali nem fez sinal de que soubesse qual milagre se passava naquele oco de pedra onde outra voz, outra vez, gritava. Ai Jesus.
Arfaram pulmões, dois de um homem, outros de mulher, e abriu-se um terceiro par, de par em par, engolindo o ar gelado em golfadas de quem nunca bebeu água e viu um copo. E então estremeceu todo o vazio, imenso na noite sem nuvem, um grito vivo. E dessa vez fugiram todas as línguas sibilinas que adejavam pelas pedras, e adejaram asas de gangarros que cantaram todos juntos saídos não se sabe de que galho em direção ao firmamento.
Depois disso foi silêncio. Até que passos hesitantes de alpercatas no chão duro foram vindo lá de longe, e três figuras surgiram gingando sob o céu iluminado. Traziam chapéus de couro espremidos entre as mãos, e pararam à porta da casa de terra e olharam com olhos mansos o casal e a criança. Nasceu, um murmurou, e era retinto como a noite. Tem saúde, disse o outro, e sorriu com os dentes que não tinha. Sorriram todos com os dentes que não tinham. E então o primeiro ofereceu o seu presente, eu trouxe água pra lavar essas gargantas. É salobra, mas se bebe, e o pai recebeu a moringa. Eu trouxe um queijo pra dar leite prà comadre, declamou o segundo. É pouco, mas é meu último, de cabra que já morreu. E o pai recebeu o queijo em gratidão silenciosa. O terceiro não trouxera nada e desculpou-se. E o pai o abraçou como a um irmão. E então disse o visitante, olhando os olhos de um e depois os olhos da outra: mas uma coisa eu digo e dou pra esse menino. Coragem. Abraçaram-se outra vez.
O homem ergueu o menino devagar. A mulher chorava rindo. O menino ria fundo, ou seria isso um esgar de quem tem frio na noite sem fogo, mas que queima, a noite queima, olha o céu, Maria como queima de estrelas. E era verdade. Havia mais estrelas sob o chão naquela noite do que era de costume. Eram tantas que os seis, à sombra do abrigo improvisado, brilhavam de azul como se anjos. Ói, uma caiu, disse o homem. Faça um pedido, disse a mulher, que agora apertava entre os braços que tremiam o menino. Ou seria o menino que tremia. Ou seria a mãe que era o menino e não importa quem tremesse, porque tudo estremecera sob o grito da criança, e nem as pernas do seu pai, esse josé entre josés, tinham firmado ainda o passo apesar do seu esforço para parecer tranqüilo e muito firme. Pediu então que o filho se salvasse das garras da morte, e que a vinda do menino salvasse a ele, José, que esculpia cactos em busca d’água, e à sua esposa, Maria, que escavava a água em busca de leite, e à vaca morta, deitada à porta da caverna, e ao burro seco, que ruminava a própria língua havia meses, e às galinhas, todas mortas e enterradas sobre o chão, e ao próprio chão, que se abria como placas tectônicas de um planeta que crescesse, só crescesse, de maneira que nenhuma terra se encontrasse com outra, todas fossem se afastando, inexoravelmente.
E falou então Maria, a geradora da bênção, com sua voz seca de caatinga que soava entre os presentes como música de santos: Isso há de ser, meu Pai. Teu filho vai salvar a nossa vida, sim. Já salvou. São mais dois braços, duas pernas. A gente fica velho, a gente morre. Mas teu filho nasceu hoje. Nasceu um filho nessa terra onde não nascem nem as ervas mais daninhas. Esse é o único caminho nesses cacos de barro, e hoje é essa a única verdade. Essa vida. O teu filho, que vai aliviar o peso dessa cruz dos nossos ombros.
E sorriram entre si. E nu, descalço, aberta a boca e já vazia, o menino já dormira.


Quatro Sonetos

I.
O que eu sei que possuo, fatalmente
ligada ao meu destino atordoado,
é a consciência amarga de m'ia gente,
do meu povo que pena, amontoado
por sobre morros lúgubres, latentes
de inesperada e palpitante vida
que se alimenta de cerrar de dentes
e tira riso da própria ferida.

Pois essa consciência tão amarga
- café com cianeto e água-forte,
aponta a impotência de m'ias mãos
ao mesmo tempo que, tenaz, alarga
as artérias fechadas da m'ia sorte
pulsando o sangue de um milhão de irmãos.

II.
O céu. Um pejado navio que bóia
Com trêmulo casco de chumbo volátil
Que freme e que oscila e navega e apóia
Seu peso na luz transparente de frágil

Eu piso seus pés como fossem de sombra
Você anda à frente de mim como guia
Seus pés são suaves tapetes de alfombra
E a luz transparente e aquosa do dia

As gotas não molham meus olhos de vidro
E a chuva não seca um soluço de pedra
O gosto da chuva são gotas de cidra

O ar entre cálido, o vento entra frio
E as gotas de água são pingos de pedra
Formando uma flor (e é você!) sobre o rio.

III.
O que eu amava em ti não era a efêmera
Presença dos teus dedos sobre os meus,
Quando eu descrente compreendia Deus,
Ou teu sorriso que incendiava a atmosfera.

O que eu amava em ti não tinha nome
Nem tinha medo da distância imensa
Nem restrição à ausência ou à presença
Da matéria, que o tempo, atroz, consome.

Há coisas que eternas porque puras
- O dia da tua intrínseca doçura
Pulsava mesmo se não vias nada.

Era a tua claridade de alvorada,
Era a tua redenção, pomba com ramo,
O que eu amava em ti, e ainda amo.

IV.
No céu escuro do perdão da noite
De sal a flutuar na atmosfera
Vejo-te surgir, e minh'alma dói-te
E tu, serena, mira-me e pondera

Tu te ergues lenta, como majestosa
Anunciando-me o que eu mesmo penso
E te demoras lânguida em suspenso
Esquiva e assim sincera e assim sinuosa

E sempre existe em mim u'a brisa fria
Na boca do mar, que se anuncia
Em meus cabelos que não lembram nada

Que são teus dedos, quando te desfraldas
Em meus cabelos, onde então tatuas
Tua luz gelada, prateada, lua.

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