III




Levanta-te da cama, olha a janela...


Naquela noite, depois de várias semanas de silêncio, ouvia-se de novo o som do violino desafinado vindo do centro da pequena praça incrustada no meio do povoado.

Ó musa dos meus dias de gerânios!

O violino era de pouca qualidade, mas, como comum a todos de sua espécie, pungente como um corte numa rosa. A voz abafada cantava uma letra nova, não lembrada por ninguém. E , como de costume, todos, incondicionalmente, paravam o quer que estivessem fazendo para ouvir as serenatas noturnas. Fosse a janta ou uma briga de divórcio.
O violino, que nenhuma daquelas pessoas quase isoladas do mundo suspeitaria ser de qualidade inferior à virtuose, era, talvez por ser exótico, talvez por expressar, de uma maneira ou outra, as dores ou os júbilos que a rudeza lhes calava, uma alegria, e uma atração imperdível. Quase como um circo, ou o campeonato de pesca. Assim, eles se lembravam de todas as letras de todas as canções de Djalma Rabeca, uma por uma. E aquela era novidade.
Novidade que prosseguia, agora com um violão que lhe surgira do nada para acompanhar.


Levanta-te da cama, olha a janela,
Ó musa dos meus dias de gerânios!
Levanta, sem receio, sem cautela,
Que ao teu clarão se escondem os demônios...

Levanta-te da cama, olha p'ra fora!
Soergue o verbo Tu pelos espaços!
Desfaz a escuridão que me apavora!
Clareia com tua luz meus olhos baços!

Do mar sacramental de teus cabelos,
Escuta, ó minha musa, esses apelos
De minha alma, a tremular como uma vela...

Dá-me tua mão a mim, o óleo ungido
Que à vela há de fazer fogo garrido...
Levanta-te da cama, olha a janela!


Alguém murmurou, segurando ainda o garfo a meio caminho da boca: que beleza...


*

- Olha a manga, Rabeca! disse o menino, e parou sob a janela. Esperou alguns segundos as moedas que o outro fora buscar no interior da casa, e quando este voltou, o menino perguntou de olhos muito abertos: Por que você nunca cantou mais?
Djalma Rabeca sacudiu a cabeça muito imperceptivelmente e disse que não era assim, e que não sabia mais músicas. O menino olhou de lado, farejando segredos. Djalma Rabeca sempre cantava serenatas para a fonte da praça, pelo menos uma vez por semana, e fazia já mais de um mês que não se ouvia o som pungente do violino e a sua voz abafada cortarem as estrelas. O menino ainda tinha o rosto soslaio. Disse: se eu te arrumar uma música nova, então você me ensina o violino? Djalma Rabeca sorriu ausente e disse que claro que sim, e o menino foi embora com seu carrinho de mão cheio de mangas, anunciando as vendas, e vez ou outra parando em alguma casa, sob gritos de alô Mangólha!
Mangólha acabou de percorrer a rua principal, sentou no carrinho de mão e chupou uma manga enquanto chutava uma pedrinha no chão de um pé para o outro. Depois pulou do carrinho e dirigiu-se para o farol.
- Olha a manga, Almirante! gritou à porta. João Almirante apareceu alguns segundos depois, como quem não tem pressa de nada. - Doce? perguntou. - Docinha, respondeu, e ofereceu uma lasca tirada à faca. João Almirante aprovou, e foi buscar moedas. Quando voltou, Mangólha sorria. - Me faz uma música? perguntou. - Como!? respondeu. Mangólha sorria torto - Eu bem sei que você faz rimas. Preciso de uma. Você faz uma pra mim, sobre qualquer coisa, e eu te pago com mangas. João Almirante teve um súbito pudor imenso. Este moleque me anda espionando, gritou seu crânio. Eu igual um idiota cantando salmos, e esse moleque me ouvindo. Cuspiu um pedaço de manga. - Muito fiapo, falou, e seu rosto agora estava fechado. Olhava para o chão, mas Mangólha ainda sorria. Então, insuportavelmente, o menino mostrou os dentes, mas só com o lado esquerdo da boca, e falou devagar: Eu posso te dar notícias que iam ser muito da sua vontade. Os olhos de João Almirante se ergueram imediatamente e prenderam o menino. Que notícias? perguntou. Ah, notícias... sobre a sua sereia, por exemplo, respondeu.



6 comentários:

Darshany L. disse...

ohhhhh

Darshany L. disse...

á la garcía márquez.

andre, que mais escritor você se parece?
como pode?

meu deus?

L.S. Reis disse...

Será que ele vai compor as rimas?... Que bunitinho ^^ O Harry é especial.

=*

bia de barros disse...

A sua sereia deve ser a musa mais inspiradora dos sete mares *-*

saudades do harry.
*=

bia de barros disse...

Tá sumido mas nem por isso vai deixar de ganhar um prêmio tão a sua cara [lá no blog]...

*-*

Mari disse...

pq eu não venho aqui sempre?