I




João Almirante acordou súbito para ver que não eram monstros marinhos que lhe devoravam as carnes, mas apenas a gaivota que lhe espiava à janela pedindo alimento já mais uma vez depois de ontem. Impressionante aquela gaivota, que não lhe tinha medo e olhava, de fato, curiosa, todos os dias, manhãs, tardes e noites, e que se ia sem despedida ao receber ainda no ar o biscoito de água e sal que João Almirante já lhe jogava agora, para depois ir debruçar-se ao parapeito. O mar azul lá embaixo, e a parede branca do farol se descascava. A gaivota já se fora longe. Esfregando os olhos e bebendo com pulmões a maresia, João Almirante não imaginava que à noite do terceiro dia de sua estada ia encontrar em um baú velho no quarto de despensa, sob as latas de sardinhas, um caderno velho rabiscado com tinta manchada em páginas amarelas, desmanchando de umidade, que ocupariam finalmente seu ócio modorrento de uma península onde só iam caranguejos. Estará então João Almirante, à luz da lamparina que lhe cabe no seu quarto quase medieval, copiando para um caderno novo, embasbacado, a primeira das páginas moribundas:


I.

Do topo ventoso de um farol antigo
Assisto teu rosto no fundo do mar.
Com olhos molhados devolves o olhar,

Tornando em areia meu sólido abrigo.

Avisto meu rosto no fundo do mar
Mas sem o teu rosto sob o mar comigo.

E exausto percebo, do alto postigo,

Que nunca estivera teu rosto a me olhar
,

Teu rosto que sempre, da branca barcaça

Da minha esperança, que pela água passa,

Suspenso em milênios estive a mirar...


Ah, falsa esperança, não passas de um brilho!

Meneio de luz que se parte em vidrilho

Voltando com gosto profundo do mar!




Quando parou de escrever, as mãos de João Almirante tremiam. Não pela qualidade duvidosa do soneto, que ele, entretanto, não seria capaz avaliar tendo como tinha apenas, por educação, algo de essencial que aprendera havia anos na escola e coisas a mais que, por conta própria, descobrira em livros e conversações sem nunca se interessar demasiado pelas artes literárias. Mas a surpresa de encontrar, sob latas de sardinha, um caderno escrito por algum desconhecido dava a sensação de ter encontrado uma companhia inesperada no exílio, crusoé ao ver um sexta-feira. Ergueu a cabeça, e a gaivota lhe observava da janela.
E este animal não dorme nunca? perguntou-se João Almirante.



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5 comentários:

Darshany L. disse...

é josé ou joão?

bia de barros disse...

se um pingo de tinta cai num pedacinho azul do papel...
ah, esse pássaro...
ah, esse caderno...
que quer te acompanhar.
feliz ano novo!
*;

Unknown disse...

isso... são trechos de um livro?

Unknown disse...

Ops...

Rafael Abreu: disse...

Sua escrita e profusa, harry.
Da gosto.
Excelente.